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Foto do escritorFábio Santos

Insegurança alimentar e nutricional: o que precisamos saber para agir no mundo.

Por Alessandra Buarque de Araújo Silva (1)




Insegurança alimentar não é um tema novo. Milhões de pessoas, no mundo, estão em situação de insegurança alimentar, nutricional, extrema pobreza, miséria, vulnerabilidade social.


Mas, por que estamos pautando esse tema com tanta recorrência, no Brasil, atualmente? Será que a experiência da necropolítica (2) que estamos vivendo no Brasil é a referência que nos mastiga e moi, nos lembrando que a fome também é um projeto de morte? São mais de 125,6 milhões de pessoas (3) que não se alimentaram como deveriam ou já tinham algum tipo de incerteza quanto ao acesso à alimentação no futuro e, não é consequência da pandemia, tão somente. A pandemia agravou um quadro que já era desumano e cruel.


O que é, então, essa insegurança alimentar e nutricional que se faz presente em nosso cotidiano? Que conteúdo é esse que nós precisamos acessar, a fim de que possamos contribuir para o enfrentamento dessa calamidade, enquanto cidadãos do mundo? Os termos que a definem podem dar conta de justificar essa condição subhumana em que vivem seres humanos iguais a nós, impulsionando nossa indignação para alterar a práxis nossa de cada dia?


Acreditamos que a busca pelo esclarecimento e conscientização acerca da realidade, ao confrontarmos os dados aqui trazidos, poderá ser o primeiro passo para uma mudança de atitude tão urgente e imprescindível. Problematizá-las é o que nos propomos no presente texto. O termo segurança alimentar surgiu logo após a 1a guerra mundial, quando se percebeu que a superioridade dos países não dependia, exclusivamente, da sua capacidade bélica, mas, também, a garantia da autossuficiência alimentar da sua população. Tornou-se um termo militar e foi intimamente associado à segurança nacional até a década de 1970 (4), porém, mesmo com a recuperação da capacidade de produção agrícola dos países, que à época estavam escassas, as mazelas da fome no mundo foram mantidas. O IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia Estatística, definiu insegurança alimentar, em gradação de vulnerabilidade como leve, moderada e grave. Do grupo de domicílios pesquisados (5), que estavam em situação de insegurança alimentar, 31,7% disse ter insegurança leve, 12,7% disse ter insegurança moderada e 15% insegurança grave (quando existe falta de comida).


A insegurança alimentar afeta 1/3 da população mundial. Segundo os dados da FAO/ONU, por volta de 690 milhões de pessoas, no mundo, sofrem de fome crônica. A pandemia fez crescer esse número em mais de 130 milhões de pessoas. Embora a África seja a região onde os níveis mais altos de insegurança alimentar total são observados, é na América Latina e no Caribe que a insegurança alimentar está aumentando mais rapidamente: cresceu de 22,9% em 2014 para 31,7% em 2019, devido a um aumento acentuado na América do Sul (6). O relatório “Estado da segurança alimentar e nutrição no mundo” adverte que a região não alcançará o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 2: fome zero e agricultura sustentável (7)


“Durante as duas últimas décadas, o rápido crescimento econômico e o desenvolvimento da agricultura foram responsáveis pela redução pela metade da proporção de pessoas subnutridas no mundo. Entretanto, ainda há 795 milhões de pessoas no mundo que, em 2014, viviam sob o espectro da desnutrição crônica. O ODS2 pretende acabar com todas as formas de fome e má-nutrição até 2030, de modo a garantir que todas as pessoas – especialmente as crianças – tenham acesso suficiente a alimentos nutritivos durante todos os anos. Para alcançar esse objetivo, é necessário promover práticas agrícolas sustentáveis, por meio do apoio à agricultura familiar, do acesso equitativo à terra, à tecnologia e ao mercado.”


Importa lembrar que o ODS citado é oriundo dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODM - FAO/ONU), da Declaração do Milênio de 2000 (8), “erradicar a pobreza e a fome”, quando o Brasil deixou de aparecer no mapa da fome com sua área pintada em cores quentes, em 2014; ou seja, deixou de ter a fome como um problema estrutural, conforme afirma o Instituto Fome Zero


"A conquista ocorreu após mais de uma década de implementação, acompanhamento e aprimoramento de políticas públicas de promoção do direito constitucional à alimentação, como os 20 programas incluídos no programa guarda-chuva Fome Zero, utilizado posteriormente pela FAO para promover a segurança alimentar em outros países."


Segundo a OXFAM Brasil, a segurança alimentar é a garantia de todas as dimensões que inibem a ocorrência da fome - disponibilidade e acesso permanente de alimentos, pleno consumo sob o ponto de vista nutricional e sustentabilidade em processos produtivos. Essa segurança está garantida quando a família tem acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais. Por isso, a insegurança alimentar é consequência direta das mudanças climáticas, degradação dos solos, escassez hídrica, poluição, explosão demográfica, falhas de governança, crises sanitárias e socioeconômicas.


É preciso ressaltar que, no Brasil, a segurança alimentar é um direito social garantido pela Constituição Federal de 1988. A Emenda Constitucional no 64 de 04.02.2010, altera o artigo 6o da Constituição para introduzir a alimentação como um direito social.


"Art. 6o. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição." (NR)


O acesso aos alimentos, no Brasil, é um direito constitucional. É o terceiro país do mundo em produção alimentar. O que produz alimenta 10% da população do globo, cerca de 800 milhões de pessoas; porém, ver pessoas fazendo fila em açougue para conseguir doações de ossos de boi para comer – na cidade de Cuiabá, Mato Grosso, a capital do agronegócio, não nos convence disso. Ler notícias de pacotes de fragmentos de arroz dispostos nas prateleiras dos supermercados, para alimentar seres humanos que podem pagar por àqueles fragmentos que tem valor nutricional reduzido e que era usado para compor rações de animais (9), também não nos convence da garantia desse direito, pelo Estado. O Brasil é o terceiro país no ranking de produção de alimentos, mas, metade de seu povo não sabe se irá comer amanhã.


Os dados do estudo “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil” realizado entre novembro e dezembro do ano de 2020, com duas mil pessoas (10), apontam que 59,4% dos domicílios entrevistados estavam em situação de insegurança alimentar durante a pandemia, e, em parte significativa deles foi reduzido o consumo de alimentos importantes para a dieta regular da população – 44% diminuíram o consumo de carne e 41% a ingestão de frutas. Importante também ressaltar que, no campo da dieta alimentar, é muito alto o custo de uma dieta saudável; além do alerta para o aumento da obesidade que constitui um grave problema de saúde, por aumentar o risco de doenças não transmissíveis tanto em crianças como em adultos. O preço dos alimentos subiu cerca de 38%, dificultando o acesso das pessoas à alimentação. Um fator particularmente preocupante é que, entre todas as regiões do mundo, a América Latina e o Caribe têm o custo mais alto de compra para uma dieta que atenda às necessidades energéticas mínimas: US$ 1,06 ao dia por pessoa. Esse valor é 34% mais caro que a média global (dados da FAO/ONU).


Diante de todos os dados aqui apontados, ficamos a nos perguntar: o que podemos concluir desse relato? Que a fome é muito mais que uma questão de insegurança alimentar, é uma questão de humanidade, de dignidade humana, como afirma a professora Dra. Cecília Rocha (11), e que todas as ações voltadas ao combate à fome precisam ser realizadas nesta perspectiva. Vivemos em um sistema capitalista que não está alimentando as pessoas; em escala mundial. No Brasil, nos últimos anos, a situação vem piorando. Os resultados da FAO, para o Brasil, evidenciam que, em 2020, a insegurança alimentar e a fome retornaram aos patamares próximos a 2004. Os dados da pesquisa elaborada pela Rede Penssan (12) mostram que o Brasil retrocedeu 15 anos em cinco, voltando a ter a fome como um problema estrutural.


Outro conteúdo que precisamos nos apropriar ampliando a perspectiva de análise sobre segurança alimentar, é compreender o significado do termo “soberania alimentar”. Do que trata? A professora Ingrid Machado, integrante do Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista, esclarece que a soberania alimentar aponta para a emancipação e autonomia dos povos para decidir sobre o que plantar e o que consumir, sem depender do que o mercado impõe para o plantio, produção e consumo. Ou seja, o direito dos povos de decidir sobre suas políticas agrícolas e alimentares, preservando os bancos de sementes, conservando suas espécies e costumes, entre outros.


“Para concretizar esse objetivo é preciso manter o controle sobre os recursos naturais, em particular a terra, a água e as sementes, que são bens públicos e por isso não devem ser privatizados.” (Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amilcar Cabral CIDAC)


Se nada for feito, até o final de 2021, 11 (onze) pessoas podem morrer de fome por minuto, no mundo, revela o relatório “O Vírus da Fome se Multiplica” (13).


O Brasil está entre os focos emergentes da fome, junto com Índia e África do Sul (14). Durante a pandemia, o auxílio emergencial instituído pelo governo federal foi garantido para 38 milhões de famílias em situação de vulnerabilidade, deixando dezenas de milhões de pessoas sem uma renda mínima. O percentual da população que vive na extrema pobreza quase triplicou desde o início da pandemia, passando de 4,5% para 12,8%. No final de 2020, mais da metade da população – 116 milhões de pessoas – enfrentava algum nível de insegurança alimentar, das quais quase 20 milhões passavam fome (15).


Há muito a ser feito. Como sociedade civil, podemos contribuir no esclarecimento das pessoas, socializando informações e promovendo o conhecimento, agindo no sentido de encaminhar a elaboração de políticas públicas nos diversos fóruns que se façam possíveis, ainda que no Brasil de hoje, construir a resistência seja um desafio constante e diário.



 

1 Mestra em Políticas Sociais e Cidadania. Especialista em Gestão e Controle Social da Política Previdenciária.

2 Termo cunhado por MBEMBE, Achille.

5 Pesquisa coordenada pelo Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia, da Freie Universität Berlin (Alemanha), em parceria com pesquisadores da UFMG e da Universidade de Brasília (UnB). Disponível em https://ufmg.br/comunicacao/eventos/palestra-aborda-efeitos-da-pandemia-na-alimentacao-e-na-situacao-da-seguranca-alimentar-no-brasil

7 A Agenda 2030 consiste em uma Declaração, em um quadro de resultados - os 17 ODS e suas 169 metas - em uma seção sobre meios de implementação e de parcerias globais, bem como de um roteiro para acompanhamento e revisão. Os ODS são o núcleo da Agenda e deverão ser alcançados até o ano 2030. http://www.agenda2030.org.br/sobre/

8 A ONU modificou a abordagem e não utiliza mais a ferramenta Mapa da Fome para comunicar os dados da fome no mundo. https://www.brasildefato.com.br/2021/06/30/afinal-o-brasil-esta-ou-nao-no-mapa-da-fome-da-onu

11 Professora Dra. Maria Cecília Rocha. Diretora do Centro para Estudos em Segurança Alimentar e Nutricional (Ryerson University, Canadá)

12 Dados da pesquisa “Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil”, elaborada pela Rede Penssan. https://www.brasildefato.com.br/2021/06/30/afinal-o-brasil-esta-ou-nao-no-mapa-da-fome-da-onu

13 O relatório “O Vírus da Fome se Multiplica” trouxe conclusões alarmantes sobre a epidemia de fome que se alastra pelo mundo. www.oxfam.org.br



REFERÊNCIAS:

ABREPAZ Entrevista – Sustentabilidade, Economia Solidária, Feminismos e Segurança Alimentar. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=1d4tl2bctZA&ab_channel=Abrepaz. Acesso em 27.07.2021


MBEMBE, Achille. Necropolítica. Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Arte & Ensaios. Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFRJ. 8a reimpressão. Impresso em São Paulo. Novembro, 2020.


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