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  • Elias Inácio de Moraes

A Mediunidade a Serviço da Ideologia



Elias Inácio de Moraes,

Franco Luciano Pereira Pimentel e

Laísa Emanuelle de Oliveira dos Santos


Rolou esses dias um riquíssimo debate no grupo de estudos da AbrePaz, do qual nós três participamos com mais 115 pessoas estudiosas do Espiritismo de todo o Brasil. De um lado, alguns questionamentos instigantes, que nos forçam contra os limites do conhecimento já estabelecido; de outro, a experiência concreta de uma médium que nos obriga a pisar a realidade do cotidiano, com as dúvidas e indagações pertinentes à prática mediúnica. Em ambos os polos, a tentativa de compreender a realidade com base nessa possibilidade de mediação entre o mundo espiritual e as carências humanas na travessia da experiência terrena.

Parece bastante claro pelo que foi pontuado no debate, pelos comentários do grupo e pelo que se percebe nas redes sociais, que vivenciamos hoje uma delicada situação em que a mediunidade tem sido colocada a serviço da ideologia dos médiuns. Livros, mensagens supostamente mediúnicas, com conteúdos ideológicos subliminares e até mesmo explícitos, têm pautado o modo de pensar e agir daqueles que lhes atribuem crédito. É como se a polarização que acontece no mundo dos encarnados tivesse alcançado os próprios espíritos comunicantes.

Este breve artigo reúne em uma síntese as ponderações dos debatedores, analisando a ideologização da mediunidade do ponto de vista das relações sociais estabelecidas no meio espírita como um fenômeno social a ser estudado, para além da simples questão psicológica que caracteriza o transe mediúnico, e que também será levada em conta nessa análise.

A primeira controvérsia que surge é se a mediunidade se presta a farsas como, por exemplo, atribuir aos espíritos pensamentos que, na realidade, são do conteúdo do próprio médium. Nesse sentido parece não haver novidade; mesmo os grupos mais modestos já se depararam com situações em que o médium atribui aos espíritos visões de mundo, opiniões e até recomendações práticas que são suas. O que o médium quer dizer e, por diversas razões, acha que teria pouco valor se enunciado por si próprio, ele atribui intencionalmente aos espíritos. Aí temos a farsa, muito bem pontuada por Kardec em O Livro dos Médiuns ao analisar o “charlatanismo e o embuste”.1

Mas nem tudo é farsa; se não há intencionalidade, não há que se falar em farsa. E aí abre-se outro questionamento quanto ao papel e a interferência do médium nas comunicações mediúnicas. Essa é também uma questão antiga, mas esquecida muito comumente, sobretudo quando se trata de médiuns renomados. Para lembrar que renome não é sinônimo de infalibilidade, o médium e astrônomo francês Camille Flammarion, que psicografou o cap. VI de A Gênese sob a assinatura de Galileu Galilei, se indagou bem mais tarde, em 1923, quando a astronomia já havia deitado por terra grande parte daquelas teorias, se aqueles conteúdos não seriam fruto exclusivo dos seus próprios conhecimentos de astronomia.2

A mediunidade, informam-nos os espíritos, é um sentido natural nos seres humanos, mais ou menos ostensivo e que, conforme estudado por Allan Kardec, pode ser desenvolvido, estimulado, aprimorado mediante o exercício. Se ela comparece de maneira natural em videntes, xamãs, possessos e profetas, no Espiritismo ela se torna objeto de estudo, de experimentação, de uso controlado em uma espécie de laboratório, que são as sessões mediúnicas espíritas, além de largamente utilizada para a produção de livros que abordam os mais variados assuntos.

André Luiz, apropriando-se do conceito de “ondas”, que estava na moda na primeira metade do século XX, nos ajuda a compreender que os médiuns percebem o mundo espiritual por meio de “ondas mentais”, mediante as quais eles traduzem o mundo espiritual para a realidade dos seres humanos.3 Alexandre Aksakof já havia observado que, sob esse aspecto, a mediunidade sempre apresenta um forte componente anímico, não no sentido de invalidação da sua existência, mas como um componente constitutivo da sua própria natureza.4

Nenhuma comunicação pode ser inteiramente atribuída ao espírito autor, sempre há uma participação do médium no conteúdo das comunicações. O vocabulário, parte dos sentimentos ali expressos e em muitos casos até mesmo parte das ideias – quando não todas – são conteúdos próprios do médium, acionados a partir da afinidade de modos de pensar e das visões de mundo dele e dos espíritos que com ele se comunicam. Às vezes até mesmo as intenções são do médium.5

Isso pode ser observado nas sessões mediúnicas das nossas casas espíritas, e o exemplo mais conhecido é a doçura contida nas cartas de entes queridos psicografadas por Chico Xavier, ou o vocabulário mais rebuscado observado nos textos da lavra de Divaldo Franco. Em todos esses casos não resta dúvida de que são características do próprio médium que se manifestam na sua produção mediúnica, enriquecendo o conteúdo em alguns casos, ou limitando-o em outros. Nos casos de produção de conhecimento, o que está por detrás de certos processos mediúnicos é basicamente linguagem, experiência e uma influência espiritual mais ou menos acentuada. Ou seja, a construção cultural histórica na qual o médium se insere é absolutamente responsável por grande parte daquilo que ele produz.

Gunnar Myrdal, economista sueco premiado em 1974, discutindo o conteúdo das pesquisas sociais, observa que todo pesquisador tende a colocar sua valoração, preconceitos e ideologia nas análises que faz da realidade. É a nossa capacidade de valoração que nos permite apreender e compreender a realidade. A valoração é uma intencionalidade subjetiva na qualificação de um objeto, e seu conteúdo tende a ser mais afetivo que racional. Para determinar a objetividade de qualquer estudo é necessário que os instrumentais analíticos sejam expressos, e dentre estes instrumentos está o valor de que o pesquisador é portador. Apropriando essas observações para a nossa reflexão espírita, isto se verifica também nas palestras, artigos doutrinários, nos livros, quer sejam de natureza autoral, quer sejam objeto de produção mediúnica, e até mesmo nas opiniões e comentários expendidos nos diálogos do cotidiano. Conhecendo os valores dos quais as pessoas são partidárias nós podemos dimensionar o conteúdo e os limites das ideias que elas veiculam. Por estabelecer a forma como apreendemos e compreendemos o mundo, o valor tende a formar nossa subjetivação e, por isso, todo o nosso discurso, verbal ou escrito, é sempre uma ratificação de valores concebidos que já possuímos.6

E isso ocorre também com o médium. A mediunidade não é um ato de recepção, como muitas vezes se assevera. Diferente de um rádio ou uma TV, o médium não é uma máquina. A determinação da sua subjetividade como ser humano qualifica-o mais como tradutor do que como receptor. Kardec o considera como um “intérprete”, que traduz o pensamento do espírito; e não se pode esquecer que toda tradução é também um ato de criação pois, ao proceder essa tradução, ele imprime no seu texto ou na sua fala os seus próprios valores e crenças.7

Criou-se uma mitologia que entende a mensagem mediúnica como sendo pura e simplesmente o pensamento dos espíritos, ao pé da letra, e não é e nunca foi este o sentido da comunicação mediúnica. Os espíritos insistem em explicar a Kardec que nem mesmo a chamada mediunidade “mecânica” dispensa a participação do médium. Se Chico Xavier manifestava a capacidade de, em alguns casos, repetir a letra e até a assinatura do espírito comunicante, essa capacidade de expressão é raríssima e não está disponível à grande quantidade de médiuns que escrevem e publicam livros Brasil afora.8

E isso não é de agora; sempre foi assim. O próprio conteúdo da obra kardequiana é comumente mal compreendido por falta dessa perspectiva. Uma análise cuidadosa dos textos mediante comparação com o conteúdo da Revista Espírita deixa claro que em todos os livros de Allan Kardec está sempre presente, em maior ou menor intensidade, a participação dos médiuns e a sua própria na elaboração dos seus conteúdos.

Como sempre existiram pessoas sectárias, racistas, supremacistas, sempre houve nos conteúdos mediúnicos elementos de racismo, de supremacia cultural, de sectarismo, que podem ou não ter sido compartilhados pelos espíritos, além dos elementos estruturais que fazem parte da concepção da própria sociedade em que as comunicações mediúnicas acontecem. Os espíritos não perdem sua humanidade, sua subjetividade e sua falibilidade ao desencarnar e, dessa forma, há entre eles – Kardec deixa isso muito claro em O Livro dos Médiuns – os que são sectários, racistas, supremacistas, mesmo depois de transpostas as portas da imortalidade. Apenas não nos habituamos a fazer esse tipo de análise pelo fato de, no Brasil e por uma série de fatores, o Espiritismo ter se distanciado completamente do método utilizado por Kardec para validação dos conteúdos obtidos por via mediúnica. Por aqui o atributo de ser mediúnico foi confundido com o de ser verdadeiro.

É isso o que explica o fato de nos últimos trinta anos esses contrastes terem tomando corpo e, cada vez mais, assumido uma dimensão de realidade no discurso espírita. A produção de ficção literária espírita aumentou muito ao longo desses anos e grande parte dos médiuns têm se permitido alienar suas possibilidades mediúnicas a serviço de ideologias e outros interesses próprios.

A vivência do Espiritismo, em sua acepção conservadora (nicho e celeiro de produção medianímica)9, até consegue teorizar e explicar a questão da participação do médium nas comunicações, mas não dá conta de corrigir os problemas da farsa mediúnica. E não o consegue por razões muito simples:

a) por não se interessar em fazê-lo; há inúmeros interesses em jogo, sobretudo interesses ideológicos e, para quem esse discurso é favorável, é conveniente fazer silêncio.

b) por ser ele mesmo fonte de toda a criação de produções mediúnicas questionáveis e ideologicamente orientadas.

c) por não possuir uma autoconsciência metodológica para resolver a questão da interferência da sua subjetividade nos conteúdos produzidos.

Sociologicamente podemos dizer que o Espiritismo se encontra diante do desafio de resolver um problema que ele mesmo criou; ou melhor, foi levado a criar. Como grande parte dos discursos religiosos se encontram estruturados justamente no limiar do discurso moral (obediência cega à regra), constituído no tronco arcaico da humanidade, ao aceitar tal moral heterônoma – em vez da moral autônoma que caracteriza a doutrina – a performance espírita passa a se constituir de comportamentos historicamente predeterminados a partir de concepções hegemônicas.

O espiritismo, como alavanca evolutiva para os seres humanos, ao revelar uma nova dimensão da realidade, procede a apropriação desse conhecimento e a sua competência expressiva a partir da própria historicidade dos seres humanos, com seus padrões atávicos e sua constituição social. Léon Denis pondera que o Espiritismo será aquilo que nós resolvermos expressar dele, e a forma como cada um vivenciará isso é personalíssima; não existe um padrão instituído. Por essa razão, mais do que falar em um Espiritismo, há que se falar em Espiritismos, no plural.10

Se a mediunidade é operação de tradução na qual tanto o componente anímico quanto o componente espiritual estão presentes, cabe a nós espíritas comparar os conteúdos das mensagens e livros espíritas com as abordagens científicas e filosóficas do nosso tempo, assim como procedia Kardec. Isso implica em uma análise crítica da produção mediúnica contemporânea que possibilite uma retomada do aspecto progressista do Espiritismo, conforme proposto inicialmente, na direção de uma doutrina não mística, e sim calcada na racionalidade e na ética, com assunção da sua responsabilidade social. A ética é o que nos protege das uniformidades e generalidade de todo estado moralista pessoal. Isso nos possibilitará distinguir o que pode ser, de fato, um conteúdo revelatório e o que é simples manifestação do ponto de vista do médium.

É bem provável que, agindo desse modo, consigamos, daqui a algumas décadas, refletir um ganho de instrução do senso comum. Mas convém não esperar que isso surta efeito imediato, sobretudo nesse momento de polarização política e ideológica. As consequências práticas e teóricas dessa ideologização da mediunidade só terão como ser avaliadas adequadamente bem mais adiante, quando talvez já não seja mais possível reparar os prejuízos disso decorrentes.


1Kardec, Allan. O Livro dos Médiuns, cap. XXVIII. FEB, Brasília/DF, 2005.

2Flamarrion, Camille. As Forças Naturais Desconhecidas, pag. 23. Ed. Conhecimento, Limeira/SP, 2011.

3Xavier, Francisco C. Mecanismos da Mediunidade. FEB, Rio de Janeiro/RJ, 1999.

4Aksakof, Alexandre. Animismo e Espiritismo. FEB, Rio de Janeiro/RJ, 1987.

5Kardec, Allan. O Livro dos Médiuns, cap. XIX. FEB, Brasília/DF, 2005.

6Myrdall, Gunnar. A Objetividade nas Ciências Sociais. Ed. Assírio Alvim. Lisboa, 1976.

7Kardec, Allan. O Livro dos Médiuns, cap. XV item 180. Ed. FEB, Brasília/DF, 2005.

8Kardec, Allan. O Livro dos Médiuns, cap. XIX item 223. Ed. FEB, Brasília/DF, 2005.

9O livro Rumo ao Mundo de Regeneração, da ed. LEAL, publicado em 2020 por Divaldo P. Franco com autoria atribuída ao espírito Manoel P de Miranda, repercute acusações infundadas do ex-ministro da educação Abraham Wheintraub contra as universidades federais (pag. 20) além de insistir no “tratamento precoce” da covid-19 (pag. 156), contra cujo uso a comunidade científica internacional tem alertado em razão de sua ineficácia e dos efeitos colaterais relatados. Também o livro Um Novo Mandamento vos dou da ed. Pedro e Paulo, publicado em 2020 por Carlos A. Bacceli, de autoria atribuída ao espírito Dr. Inácio Ferreira, faz uma menção honrosa a Jair Bolsonaro e a Donald Trump e ainda se presta a uma demonização do Comunismo (pag. 28) e a comentários depreciativos e comprovadamente infundados contra a China, além de uma apologia à “imunidade de rebanho” (pag. 162), considerada ineficaz, defendida mais por motivos econômicos do que por real interesse em prevenir a perda de vidas humanas. Vide estudo em https://pebmed.com.br/teoria-da-imunidade-de-rebanho-para-covid-19-funciona/

10Denis, Léon. No Invisível, introdução. FEB, Rio de Janeiro/RJ, 1996.


 



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